Conheça o homem que passou por uma cirurgia cerebral e parou no tempo
O que era para ser um procedimento para amenizar crises de epilepsia acabou se tornando um grande passo para a neurociência
Existe um marco importante para a neurociência que aconteceu devido ao caso intrigante de um homem: Henry Gustav Molaison. A situação de Henry foi estudada desde 1953 até a sua morte, em 2008.
Cirurgia
O médico avaliou o quadro de H.M. e constatou a gravidade do problema. Depois de ficar sem outras opções, Scoville sugeriu uma cirurgia experimental que iria remover pequenas partes do cérebro de Henry para reduzir as convulsões. Desesperado, o rapaz concordou com o procedimento, que foi realizado em agosto de 1953.
Henry Gustav poucos anos antes da cirurgiaFonte da imagem: Reprodução/New Yorker
O processo cirúrgico no cérebro de Henry incluía a remoção de boa parte do hipocampo (duas partes do cérebro inferior) e porções de seus lobos temporais (as partes laterais do córtex), pois o médico achava que estas áreas estavam causando as convulsões. Durante o procedimento, H.M. esteve consciente, depois de ter sido aplicada apenas a anestesia local.
Enquanto ele parecia bem durante o procedimento, como relatou depois Scoville, a cirurgia revelou-se "um erro trágico". No entanto, este erro seria muito importante para a história da neurociência.
Efeitos inesperados
Fonte da imagem: Shutterstock
Após a cirurgia, os médicos gostariam de contabilizar apenas os pontos positivos, que existiram, mas tiveram que lidar com uma situação inesperada. Quanto às convulsões, a cirurgia foi bem-sucedida, pois o quadro ficou bem mais controlado e ameno. Por outro lado, o procedimento não foi tão bem-sucedido quando ficou claro que havia interrompido a memória de Henry de uma forma debilitante.
O fato era que H.M. podia se lembrar de coisas do passado distante, mas não era capaz de absorver nada de novo à sua memória consciente. Ele só podia guardar pensamentos por cerca de 20 segundos e não conseguia se lembrar de fatos que ele tinha aprendido recentemente ou eventos que tinham acontecido.
O neurocirurgião William Beecher ScovilleFonte da imagem: Reprodução/Uol
Ele também não conseguia se lembrar de coisas que aconteceram um ano ou dois antes da cirurgia e tinha lapsos aleatórios em sua memória sobre onze anos antes disso.
Porém, curiosamente, H.M. era capaz de aprender novas habilidades motoras, co
mo tocar um instrumento musical ou um jogo moderno. No entanto, na próxima vez que ele era convidado a realizar essas atividades, o homem não tinha nenhuma lembrança de que ele sabia como fazê-las, apesar de ser capaz de executar bem cada uma delas.
As capacidades e incapacidades da memória de Henry Molaison foram intrigando e surpreendendo os médicos. Com o passar do tempo, eles também descobriram que H.M. parecia ser capaz de adquirir pequenos fragmentos de informação sobre a vida pública, como os nomes de celebridades.
Ele também tinha a capacidade de aprender novas memórias espaciais, como o layout de sua residência, mas não tinha nenhuma ideia de como ele sabia dessa informação ou como os diferentes cômodos eram.
Descoberta
Henry MolaisonFonte da imagem: Reprodução/The Guardian
A maioria dos cientistas da época da cirurgia acreditava que a memória do ser humano era distribuída por todo o cérebro e que não dependia de nenhuma região. Porém, a condição de H.M. revelou que existem diferentes tipos de memória de longo prazo que vêm de diferentes partes do cérebro. O caso de Henry também deu dicas sobre quais áreas do cérebro são responsáveis pela conversão da memória de curto e longo prazo, entre outras coisas.
Apesar dessa ótima novidade para a ciência, a perda de memória impedia H.M. de ter uma vida normal e ele praticamente “parou” no tempo. Em 2004, ele ainda achava que Dwight Eisenhower era presidente dos Estados Unidos (de 1953-1961), acreditando também que ainda tinha cabelos escuros e pele sem rugas, como ele tinha na década de 1950.
Como não poderia deixar de ser, H.M. necessitava de constante ajuda e vigilância. Por essa razão, H.M. continuou vivendo com os seus pais. Depois, viveu com um parente ao longo dos anos, pois não conseguia manter um emprego devido a sua perda de memória. Durante este tempo, H.M. ajudava nas tarefas domésticas, provando que ele poderia realizar atividades diárias a partir do que se lembrava dos anos antes de sua cirurgia.
Pesquisas constantes
Henry nos anos 70Fonte da imagem: Reprodução/Student Society
Com o passar das décadas, H.M. participou de centenas de estudos e experimentos sobre a memória e a aprendizagem, revelando informações anteriormente desconhecidas sobre o funcionamento do cérebro humano. Apesar de sua amnésia, a inteligência dele em áreas fora da memória manteve-se normal. Isso fez dele um excelente candidato para experimentos.
Além disso, a personalidade calma e bem-humorada de Henry não foi alterada pelo dano em seu cérebro, sendo muito amigável e feliz, o que era ótimo para longas pesquisas. Ele nunca se cansava de fazer testes de memória repetidamente, o que outras pessoas achariam tediosos. Afinal, os testes eram novos para ele o tempo todo. Ele também se apresentava para os pesquisadores gentilmente como se fosse a primeira vez.
Entre os testes, H.M. costumava fazer palavras cruzadas. Se as palavras eram apagadas, ele faria as mesmas repetidamente. Quanto à forma como ele se sentia sobre tudo isso, ele disse certa vez: “Eu estou tendo uma pequena discussão comigo mesmo. Agora, eu estou querendo saber. Eu fiz ou disse alguma coisa errada? Veja só, neste momento tudo parece claro para mim, mas o que aconteceu um pouco antes? Isso é o que me preocupa”.
H.M. foi viver em uma casa de repouso quando tinha 54 anos de idade, ficando lá até a sua morte em 2008, aos 82 anos, marcando a história da neurociência como o mais importante paciente para a área. Ele deixou seu corpo para a ciência e seu cérebro foi dissecado em 2401 "fatias" na Universidade da Califórnia, em San Diego. E as pesquisas sobre o cérebro humano e suas memórias continuam.