Os pastores que tentam manter vivo o espírito de Lutero
Quinhentos anos depois do ato de rebeldia que mudou o Ocidente, eles seguem fiéis ao lema da Reforma Protestante:Igreja reformada, sempre se reformando
O joelho direito dói, mas a mulher sobe firme os degraus do Morro Dona Marta, na Zona Zul do Rio de Janeiro. Enquanto caminha, os moradores saem de suas casas para recebê-la com abraços, a despeito de sua imponência e expressões firmes. Ela conhece todos pelo nome e pergunta sobre parentes, estudo, trabalho. “Essa é minha família”, diz, apontando para os barracos. “Todo mundo aqui é meu filho. É tudo preto mesmo, ué. Minha favela é minha paróquia.”
Vigorosa aos 73 anos, Edméia Williams cuida, há 27, da Casa de Maria e Marta. Das 7 da manhã às 5 da tarde, a casa atende diariamente 98 crianças do Morro Dona Marta, oferecendo-lhes refeições, aulas de reforço escolar, informática, música e canto, além de material didático e roupa. O custo mensal de R$ 30 mil é bancado com doações obtidas por Edméia. O objetivo é que as crianças tenham acesso ao que não têm em casa, ganhem oportunidades de se desenvolver e, assim, consigam se desviar de um destino de violência.
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Negra, fluente em quatro idiomas e formada em quatro cursos – pedagogia, psicologia, filosofia e música – além de em liderança cristã, no Instituto Haggai, em Cingapura, e em missiologia pelo Selly Oak College, na Inglaterra, Edméia é missionária da Igreja Anglicana, uma das igrejas oriundas da Reforma Protestante, o movimento iniciado, há 500 anos, pelo monge agostiniano Martinho Lutero. No dia 31 de outubro de 1517, Lutero pregou na porta da igreja do castelo da cidadezinha de Wittenberg – hoje no território da Alemanha – 95 teses que questionavam a venda de indulgências pela Igreja Católica. A aquisição das indulgências supostamente servia para absolver pecados e reduzir o tempo dos cristãos no purgatório, mas funcionava, na prática, durante a Idade Média, como meio de financiamento das autoridades eclesiásticas.
O gesto de rebeldia de Lutero, que questionava também as missas em latim, desafiava a crença de que o papa era o intermediário de Deus junto aos homens e traduziu a Bíblia para o alemão, provocou um cisma no cristianismo e mudou o Ocidente. Com a Reforma Protestante, a era moderna se iniciou. A interpretação bíblica deixou de se concentrar na mãos da Igreja e passou a ficar ao alcance da população, que se tornou livre para desenvolver sua fé. Valores como direitos individuais, democracia e liberdade religiosa foram impulsionados e a alfabetização se propagou.
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Quinhentos anos depois do ato de insubordinação de Lutero, os seguidores das igrejas protestantes representam um terço da população brasileira. Segundo o instituto Datafolha, três em cada dez brasileiros com mais de 16 anos se consideram evangélicos – 29% da população. Eles se dividem em 22% de evangélicos pentecostais ou neopentecostais e 7% de evangélicos pertencentes a igrejas consideradas históricas, como a Luterana, a Presbiteriana, a Metodista, a Batista e a Anglicana.
Com o novo status social e político alcançado pelos protestantes na sociedade brasileira, a batalha de alguns pastores passou a ser manter vivo o espírito reformador de Lutero. Esses pastores contestam as “novas indulgências”, os pedidos de pagamento de dízimos em troca de bênçãos e a venda de produtos religiosos por dirigentes de igrejas evangélicas, que abusam da fé para acumular dinheiro e poder. Eles criticam também o conservadorismo da maior parte das lideranças evangélicas.
A missionária Edméia faz parte do contingente de “novos luteros”. Seguidora de uma igreja que reúne no Brasil apenas 50 mil fiéis, sobretudo de classe média, Edméia é uma anglicana numa favela – nicho normalmente ocupado pelos pentecostais que tratam de abrir, nesses bolsões de pobreza, seus templos. Edméia não tem uma igreja no morro – e seu trabalho não pretende recrutar novos fiéis. Ela quer que as famílias beneficiadas por seu projeto sejam livres para fazer suas opções religiosas. Dissociada do bloco “gospel”, Edméia é crítica de um sistema que, segundo ela, chama as pessoas para serem “membros de igrejas, mas não seguidores de Cristo”. A institucionalização da fé, afirma, faz com que a igreja caia na soberba e na prática comercial. “Vira uma igreja indiferente, ignorante”, diz. “Detesto o termo evangélico. Dizem que o Rio de Janeiro tem mais de 20% de evangélicos na população, mas se tivesse 5% de discípulos de Jesus seria outra coisa.” Para Edméia, o que a fé cristã exige do fiel está no livro de Miqueias, no Antigo Testamento: “O que Deus quer de ti, homem? Que pratiques a justiça, que ame a misericórdia e que andes com integridade”.
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