
Brasileiro com cargo no Vaticano pede alcance dos sem religião
José Aparecido Almeida trabalha com direito canônico há 20 anos.
Ele é um dos cerca de 10 brasileiros com cargos na Santa Sé.
A formação espiritual e cultural do clero e encontrar uma forma de alcançar as pessoas que não veem a religião como parte fundamental de suas vidas são dois dos principais problemas enfrentados atualmente na Igreja Católica, segundo o monsenhor brasileiro José Aparecido Gonçalves de Almeida, de 52 anos, há 23 morando em Roma. Terceiro na hierarquia do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, que lida com as leis canônicas, ele faz parte de um grupo de cerca de 10 brasileiros que trabalham para a Santa Sé.
Especialista em direito canônico – sobre o qual fez mestrado e doutorado, além de ser sua área de atuação há 19 anos – ele não classifica os dois temas como desafios à Igreja, mas como pontos essenciais para que ela possa continuar a seguir sua vocação de maneira eficiente e verdadeira.
Monsenhor José Aparecido com o Papa Bento XVI (Foto: Arquivo Pessoal)
“Pessoalmente eu gosto de pensar que a Igreja não é desafiada por ninguém, ela que tem um desafio a fazer ao mundo”, diz Almeida. “Mas nós precisamos descobrir uma linguagem para chegar às pessoas que não veem o problema religioso. Do ponto de vista antropológico, a religiosidade é uma das características essenciais do homem. Hoje, mais do que as seitas ou as comunidades religiosas novas que apareceram, o que leva mais gente da prática religiosa católica é a indiferença religiosa, viver como se Deus não existisse. Isso é um desafio para a humanidade. A religião também é fator de formação das pessoas e da sociedade.”
O que leva mais gente da prática religiosa católica é a indiferença religiosa, viver como se Deus não existisse. Isso é um desafio para a humanidade."
Monsenhor José Aparecido Almeida
Para o padre brasileiro, outro fator importante é a formação do clero – não apenas para prevenir problemas de conduta, mas também para torná-los mais eficientes e hábeis no anúncio do evangelho. Almeida acredita que a formação deve ser não apenas cultural, com estudos, mas também humana. “Não é só uma questão doutrinal, é necessário uma formação espiritual, que os futuros padres entrem naquilo que o Papa João Paulo II chamava de escola de oração – que não é apenas repetição de fórmulas, mas encontro pessoal de amizade com Jesus.”
O conselho em que trabalha tem como responsabilidade sobretudo a interpretação das normas universais da Igreja, o auxílio técnico-jurídico para os outros dicastérios – todos os conselhos e órgãos da da Cúria Romana – e a verificação das leis das conferências episcopais, dos bispos diocesanos (que são legisladores das dioceses), garantindo que elas estão de acordo com a lei universal. “E também uma verificação das normas em vigor na Igreja, se elas são satisfatórias, cumprem a função, não são obsoletas, para estudar e propor normas para o legislador universal aprovar ou não”, explica o padre.
“A Igreja está em crise desde que Jesus escolheu os apóstolos."
Monsenhor José Aparecido Almeida
Com a experiência de quem está há quase 20 anos trabalhando para a Cúria Romana, ele diz que a crise de que tanto se fala da Igreja sempre existiu. “A Igreja está em crise desde que Jesus escolheu os apóstolos. Crise é uma palavra que tem o significado de a gente se colocar em exame, em xeque. Entro em crise todas as noites quando faço um exame de consciência. A Igreja há 2 mil anos está em crise, porque todos os homens são capazes de pecar, mas também de fazer grande coisas, ajudados pela graça de Deus.”
Trajetória
Natural de Ourinhos, padre Almeida começou seu trabalho na Igreja como padre em Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo, em 1987. A ida para a Itália ocorreu ao receber uma oportunidade de estudo. Em 1990, o bispo da Arquidiocese o convidou para estudar na Europa – junto com outro padre, foi o primeiro da diocese a estudar em Roma.
A especialização no direito canônico aconteceu por uma mistura de acaso e oportunidade. “Meu bispo fez algumas propostas, para as quais havia mais pessoas interessadas. Perguntei ‘se o senhor tem alguma área que não interessa para ninguém, eu posso ir fazer’. Eu sabia que era o direito canônico. Ele disse que era o direito canônico, tinha uma certa sensibilidade pelo problema do direito dentro da igreja. O bispo falou ‘então vai’.”
Os estudos de mestrado e doutorado foram encerrados em quatro anos. A tese que apresentou, entretanto, só foi entregue em 2009, após intensas pesquisas nos arquivos do Vaticano.
Em 1994, com os estudos finalizados e pronto para voltar ao Brasil, padre Almeida recebeu ligação de um professor, afirmando que um arcebispo queria conversar para apresentar algumas perspectivas. Ele vivia então no Colégio Pio Brasileiro, que atualmente hospeda três cardeais brasileiros que participarão do conclave para eleger o próximo Papa.
Foi quando foi convidado para trabalhar no órgão em que esta até hoje. “A pergunta foi muito interessante: ‘você teria alguma coisa contra trabalhar para o Papa?’. Eu disse que vim para cá com um projeto do meu bispo de voltar para minha diocese depois da formação. Se o meu bispo autorizasse, eu ficaria. A conversa com meu bispo acho que foi no mesmo tom , porque ele acabou dando a autorização.”
Almeida começou a trabalhar no conselho, e foi durante 15 secretario particular do cardeal espanhol Julián Herranz, enquanto ele foi presidente do órgão. Em 2010, foi nomeado por Bento XVI como subsecretario do conselho.
Temas difíceis
O conselho atua principalmente de duas maneiras: aperfeiçoando leis e normas criadas por outros órgãos da Igreja, de modo a torná-las mais técnicas e com melhor linguagem jurídica, e também criar certas propostas, quando solicitado – o Papa pode delegar ao conselho a criação de um texto sobre uma determinada matéria.
“Tenho que ler todos os pareceres que são apresentados. Procuramos fazer esse trabalho com várias etapas de filtragem, eliminação de imperfeições. Todas as questões que passam pelo conselho de uma maneira ou outra eu vejo”, explica o padre brasileiro. “Quando são normas com valor de lei, a autoridade que promulga é o Papa. Nós fazemos o trabalho de preparar do ponto de vista jurídico para o Papa aprovar.”
Foi deste modo que ele acabou tendo contato mais próximo com as mais recentes leis para punir a pedofilia dentro da Igreja – revendo em 2010 um documento sobre a punição a delitos mais graves na Igreja que havia sido promulgado pelo Papa João Paulo II em 2001.
“Bento XVI tinha trabalhado com isso quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e como Papa fez mais ainda, porque queria deixar todos os instrumentos para que os bispos pudessem solucionar esses problemas nas dioceses”, diz o padre Almeida.
Para ele, o Papa Emérito criou todos os instrumentos jurídicos e processuais para resolver o assunto – a questão agora é aplicar. “O Papa não tem um exército, não tem uma prisão. Ele não tem uma força policial para punir todos os padres. E não é função dele. Quem tem que tratar do presbitério, de uma diocese, são os bispos. Ele deu um instrumento no Vaticano e nas dioceses para resolver esses casos com celeridade", diz.
A mudança de 2010 aumentou o tempo de prescrição – 20 anos após a vítima completar 18 anos – e também determinou que qualquer abuso sexual de menor de 18 anos é punido com a pena máxima dentro da Igreja, “que tem a mesma gravidade, no campo espiritual, de uma pena de morte no campo material, civil, que é a demissão do estado clerical. Acho que hoje, nesse campo, a lei penal mais rigorosa é a Igreja Católica.”
Quem é julgado culpado perde todos os seus direitos como padre e é considerado inadequado para o exercício do ministério, mas continua a ser um católico batizado. “A igreja também tem o dever de procurar salvar aquela alma. Como tem o dever de procurar dar toda atenção as vitimas, que eh o que o Papa Bento XVI fez”, afirma o brasileiro.
Para ele, entretanto, o assunto não é uma pauta nova. “Nós somos mais de 400 mil padres no mundo inteiro. Estatisticamente o numero de padres incriminados por isso é muito menor que a media da população. É evidente que não justifica nada, mas a atenção que temos hoje é de não só dar instrumentos para erradicar o mal, mas prevenir para o futuro com a formação do clero.”
Próximo Papa
Sobre o próximo Papa, padre Almeida corrobora as declarações da maior parte dos religiosos em Roma: para ele, todos os cardeais preenchem o perfil necessário para um pontífice e o escolhido será o mais capacitado. “O papa escolhido vai responder perfeitamente com a ajuda do staff que ele tem aos problemas da cultura moderna, que tende a ser secularizada, alguns tendem a dizer neo-pagã.”
Ao ser questionado sobre a possibilidade de um brasileiro à frente da Santa Sé, ele primeiro lembra que não está em questão a nacionalidade. “Os eleitores vão se confrontar com a própria consciência, com a realidade que a igreja tem que enfrentar nos próximos anos. Com as forças que nos temos, com as fragilidades que nos temos. O papa pode ser mais ou menos brilhante, virtuoso, bom, mas vai ser sempre o papa que a providencia deixou para a Igreja Católica.”
Mas reconhece a comoção que a decisão geraria comoção. “Se a renuncia do papa fez relativizar o carnaval, imagina um papa brasileiro. Muita gente me pergunta como é Dom Odilo [Scherer, cardeal brasileiro mais bem cotado entre os possíveis papáveis], que qualidades humanas ele tem”.